No Marrocos, Flamengo já desbancou campeão mundial, teve gol anulado por rei e até “fez chover”
Em 1968, clube conquistou sétima edição do à época tradicional Torneio Internacional Mohammed V; Dezessete anos depois, clube voltou ao país, e chuva torrencial foi celebrada efusivamente
Em um país onde pouco pisou, o Flamengo tenta conquistar o mundo pela segunda vez em sua história. As raras oportunidades no Marrocos, porém, reservam causos riquíssimos. Foram quatro jogos, dois em 1968 e outros dois 17 anos depois. Em solo marroquino, os rubro-negros já levantaram taça contra equipe que ostentava a condição de campeã mundial, tiveram gol anulado por rei e até “fizeram chover”.
Taça prateada, vitória sobre campeão mundial e intervenção real
Criada em 1962 pelo então ministro dos esportes Ahmed Al-Ntifi, o Torneio Internacional Mohammed V, uma homenagem ao Rei Maomé V de Marrocos, chegava à sua sétima edição em 1968. Os participantes do quadrangular foram Flamengo, o anfitrião FAR Rabat, o francês Saint-Etienne e o argentino Racing, à época atual campeão do mundo e da Libertadores.
Na estreia, em 31 de agosto de 1968, o Flamengo encarou o FAR Rabat, time das forças armadas marroquinas e venceu por 2 a 1. Entretanto uma história peculiar marcou o jogo. Houve uma anulação de gol capaz de dar inveja a qualquer VAR. O Rei Hassan II, filho do falecido Mohammed V, deu ordem ao árbitro Salih Mohammed Boukili para que anulasse um gol do atacante Silva Batuta, até hoje um dos grandes ídolos do clube. Salih, que não era bobo, acatou.
De acordo com reportagem do site Mundo Rubro-Negro, a bola já estava no círculo central para os marroquinos reiniciarem a partida, mas a jogada acabou invalidada.
Nesse estádio, o Flamengo foi campeão do Mohammed V, em 1968 — Foto: Genito Jr.
Lateral-esquerdo e capitão daquele time do Flamengo, Paulo Henrique, hoje aos 80 anos, não esquece da curiosa intervenção real. Acredita que a aceitação por parte dos rubro-negros acabou ajudando os brasileiros a terem apoio irrestrito na final do quadrangular, contra o Racing.
– Realmente nesse jogo antes da final, o Flamengo enfrentou o time do exército. Começou o jogo, mas o Rei Hassan II não tinha chegado no estádio. Estávamos ganhando de 1 a 0. Quando ele estava acabando de chegar, fizemos o segundo gol. Aí o juiz recebeu um comunicado, parou o jogo, o coronel desceu e, por determinação do rei, pediu ao árbitro que anulasse o gol porque o rei não tinha visto.
– Ele (o árbitro) conversou comigo. Eu era o capitão e chamei Carlinhos e o Silva. Conversamos e falamos: “Aqui é um torneio de amizade, então deixa cancelar”. Nós concordamos e todo mundo bateu palma. Continuou o jogo, e nós vencemos por 2 a 1. No jogo final, enfrentamos o Racing, que tinha chegado como campeão do mundo. Tínhamos perdido um jogo para o Racing em um torneio em Portugal por 2 a 1. A sorte nossa é que nós ganhamos a torcida de Marrocos por aquele nosso gesto. Estávamos jogando junto com uma torcida que parecia a do Flamengo. Vencemos o jogo e recebemos um lindo troféu – recorda Paulo Henrique em entrevista ao Sportv.
Classificado à final, o Flamengo tinha pela frente o Racing, campeão mundial e da Libertadores à época e time que o vencera duas vezes naquela temporada, uma pelo Teresa Herrera, uma semana antes (2 a 0), e outra em março (2 a 1), num amistoso jogado no Maracanã.
Os campeões do mundo abriram o placar logo aos cinco minutos, com Cárdenas. Ainda no primeiro tempo, Luís Cláudio empatou. Na etapa derradeira, Liminha e Silva colocaram o Flamengo na frente, e o gol de Salamone aos 40 minutos não foi nada mais que uma consolação: 3 a 2 para os rubro-negros.
Participação do Flamengo no Torneio Quadrangular Mohammed V foi noticiada pelo “O Globo” em 30 de agosto de 1968 — Foto: Acervo O Globo
Como já se tratava de torneio tradicional, os jogadores do Flamengo foram recebidos como festa no Rio de Janeiro. Paulo Henrique lembra que não apenas a partida contra o Racing foi dura, mas também a missão de erguer um enorme e pesado troféu prateado, de 12 quilos.
– Está lá na Gávea. No jogo contra o Racing fui chamado lá onde estava sentado o rei. Era alto, ficava lá na tribuna. Eu fui sozinho e na hora de levantar eu não aguentei. Aí tive que chamar outros jogadores. Subiram Silva, Carlinhos e, se eu não me engano, o Murilo. Nós quatro conseguimos levantar a taça, mas o troféu é todo de prata legítima.
Flamengo voltou para o Rio de Janeiro com enorme taça conquistada no Marrocos — Foto: Reprodução Acervo O Globo
De olho na luta pelo bicampeonato mundial, Paulo Henrique , que disputou 436 jogos e marcou 12 gols pelo Flamengo entre 1960 e 1972, refere-se ao time como se ainda fosse jogador profissional. Na primeira pessoa, pede foco primeiramente na semifinal e depois, sim, uma postura de total concentração para uma possível decisão com o Real Madrid.
– Os jogadores levam muito a sério porque pode ser uma final contra o Real Madrid. Antes de jogarmos a final temos um jogo difícil. Temos que ganhar primeiro para poder pensar na final. Mas eu acredito no Flamengo, que tem uma equipe muito boa e bem estruturada. Deu uns vacilos nos últimos jogos, mas isso é jogo de futebol. Não foi relaxamento e nem nada. É do futebol. Agora a coisa é diferente. Tem que entrar focado, ainda mais contra o Real Madrid. .
– Espero que o Flamengo traga essa Copa do Mundo. É o bi, né? E vai trazer. Confio no Gabigol, que é o cérebro do time ao lado do Everton Ribeiro e do Arrascaeta, Se esses três jogarem, o time do Flamengo está bem. Estamos aqui torcendo. Uma vez Flamengo, sempre Flamengo
Em 1985, Flamengo não vence, mas “faz chover”
De volta ao Marrocos 17 anos depois da conquista do Torneio Mohammed V, a presença do Flamengo no país africano foi bastante festejada pela população local. O rendimento e os resultados não foram expressivos – empates por 0 a 0 com o Kassen Marroc (da Segunda Divisão) e 2 a 2 com o tradicional Wydad Casablanca -, mas um dos lotados treinos rubro-negros contaram com atração especial: o fim de uma longa seca em Marrakech.
De acordo com edição de “O Globo” do dia 28 de abril de 1985, uma “chuva torrencial” provocou grande festa durante treinamento do Flamengo. A mesma reportagem dá conta de que a seca já durava por dois anos na cidade.
“O Globo” do dia 28 de abril de 1985 noticiou chuva torrencial que alegrou marroquinos em Marrakech — Foto: Acervo O Globo
Autor de um dos gols do empate com o Wydad, o hoje treinador Gilmar Popoca, meia daquele Flamengo de 1985, lembra que saiu do banco para balançar a rede.
– Nesse jogo, eu lembro que estava no banco. A gente estava ganhando por 1 a 0. Entrei, estava bem à vontade no jogo. O time estava sobrando. Fiz uma grande jogada, coloquei o Bebeto na cara do gol, mas ele não fez. Depois, o goleiro rebateu uma bola e eu só coloquei para dentro. Foi um gol bem tranquilo, sem goleiro. Estava aberto – afirmou Popoca, que jogou a partida com a camisa 14.
O ex-jogador não lembra com precisão da chuva redentora, mas confirma que a temperatura seca causava incômodo na delegação rubro-negra. Aliás, não apenas o forte calor soava de maneira estranha no elenco. Hábitos locais trouxeram dificuldades e risadas.
– Depois de comer os caras arrotavam uma barbaridade. A gente, brasileiro, achou que era onda. Mas é costume mesmo, parece. A gente levou na brincadeira e virou uma bagunça.
Se quatro jogos disputados num intervalo de 17 anos renderam tanta história, imagine o que um eventual bicampeonato mundial não traria? O Flamengo inicia a briga pela taça no próximo dia 7, quando, na semifinal, encara o vencedor de Wydad Casablanca e Al Hilal.