Cidade Matarazzo, arte contemporânea e neoliberalismo
A partir do luxuoso empreendimento imobiliário que está sendo construído em São Paulo, a curadora e pesquisadora Pollyana Quintella aponta para o perigoso uso da arte contemporânea pela lógica neoliberal, questiona o modelo capitalista que diz “defender” a diversidade e discute a precarização das relações de trabalho.
Segundo a teoria econômica, o neoliberalismo propõe que o bem-estar humano pode ser melhor alcançado pela suspensão das restrições às liberdades e capacidades empreendedoras individuais no âmbito de uma estrutura institucional caracterizada por sólidos direitos à propriedade privada, livres mercados e livre comércio. O neoliberalismo privatiza ativos públicos, libera recursos naturais, desregula a indústria, facilita os investimentos estrangeiros, impacta nossas relações de trabalho e nosso meio profissional. Mas, para afirmar-se plenamente, também se constitui como paradigma cultural, e se reflete nas relações interpessoais, sexuais, afetivas, simbólicas, subjetivas e familiares, como David Harvey já bem notara. O modelo neoliberal está por toda parte, com as contradições e complexidades que isso envolve.
No caso específico da arte, não é tão difícil medir seus efeitos. Há cada vez menos apoio estatal e financiamento público para a produção artística e cada vez mais mercado. Há mais precarização e menos garantias. Mais discurso bem intencionado e menos compromisso social. Mais concorrência e menos articulação coletiva. Mais espetáculo e menos democracia.
A parceria entre arte contemporânea e lógica neoliberal vai desde a pequena escala – como a promessa de liberdade individual, por exemplo, que se aproxima da imagem clichê do artista – até as escalas maiores, com a presença da arte em projetos de “revitalização” de cidades, bem como seu papel de camuflagem refletido em operações que envolvem poluição, gentrificação, lavagem de dinheiro etc e tal. Para além da discussão econômica, podemos interpretar as novas formas de fazer política segundo algumas metodologias artísticas, vide o modo como líderes populistas autoritários têm explorado certa performatividade elástica e espetacular, que sabe disputar (e ganhar) a atenção dos grandes públicos. De modo geral, podemos reconhecer o selo da “arte contemporânea” diretamente implicado na transformação dos padrões globais de poder, sobretudo no que hoje convencionamos chamar de pós-democracia, algo que demanda mais atenção, e talvez um outro texto.
Talvez esteja fresco na cabeça do leitor o recente episódio em torno do estádio Pacaembu, em São Paulo. A gestão de Bruno Covas e o consórcio Allegra Pacaembu fecharam um contrato de concessão do estádio por 35 anos. Antes das reformas começarem, em dezembro passado, o “Paca” realizou uma grande exposição chamada Arte em campo, com a participação de 25 galerias e 54 artistas.
Segundo o pronunciamento oficial, a mostra teria o papel de afirmar algo que o consórcio pretende fazer durante toda a sua gestão: diversificar o uso do estádio para além dos jogos de futebol, investindo em atividades de cultura e lazer. Um dos objetivos da reforma, no entanto, é demolir o tobogã – área reconhecida por democratizar o estádio e abrigar torcedores de baixa renda – e, no seu lugar, construir um grande edifício ao modo dos shopping centers, o que já parece nos indicar que a perspectiva de “cultura” do consórcio é a da experiência privada. Ademais, o problema de segurança do local será resolvido com o encarceramento das atividades, ao contrário de investir na relação do estádio com o seu entorno.
Quando li um pouco sobre essa parceria público-privada, me perguntei qual era o papel da exposição coletiva ali, além de maquiar, sofisticar e proporcionar uma fachada cool que justifique interesses que estão longe de favorecer a cidade. Mas apesar do caso Pacaembu nos fornecer material de discussão suficiente, gostaria de concentrar este texto em torno de outro projeto recente, ainda em construção: a Cidade Matarazzo – o primeiro hotel seis estrelas do Brasil.
Em 2011, o grupo francês Allard comprou o antigo e tombado Hospital Umberto I, o “Hospital Matarazzo”, construído em 1904 e localizado numa região de disputa imobiliária próxima à Avenida Paulista, na cidade de São Paulo. O empresário à frente da empreitada, Alexandre Allard, é conhecido por ter criado a companhia Consodata, que já foi líder no mercado de dados de consumidores, e por ter reformado o luxuoso hotel Royal Monceau, em Paris, local de encontro de artistas e celebridades. Em 2008, antes de reformar o hotel, Allard deu uma “festa de despedida”, presenteando seus convidados ilustres com martelos e capacetes para que se divertissem demolindo as antigas paredes, o que lhe rendeu o prêmio Stratégies de melhor evento do ano.
No Brasil, não houve espetáculo de demolição, mas em 2014 o grupo organizou a exposição Made By… Feito por Brasileiros, para simbolizar o início do projeto e demarcar seu gesto de criatividade. Com a participação de mais de 100 artistas e curadoria dos franceses Marc Pottier e Pascal Pique e do canadense Simon Watson, a mostra captou R$ 3,2 milhões via Lei Rouanet. Embora majoritariamente endossado pelo meio cultural naquela altura, o caso rendeu algumas controvérsias, como a recusa de Cildo Meireles em participar mesmo depois de ser previamente anunciado. O artista alegou à imprensa que, “se soubesse que seria um projeto imobiliário, teria feito mais perguntas”.
Tratava-se apenas de um prenúncio da magnitude do empreendimento, que prevê ainda uma área comercial de luxo e o maior parque privado de São Paulo. Não à toa o título do projeto seja “Cidade Matarazzo”. A promessa é que ali será possível experimentar uma espécie de cidade privada dotada dos melhores serviços e alheia à ruína do mundo. Em fevereiro deste ano, o projeto anunciou uma parceria com o banco Bradesco para inaugurar a “Casa Bradesco de Criatividade”, incluindo um suntuoso espaço expositivo. Com curadoria de Marcello Dantas, a programação pretende trazer os disputados nomes internacionais em projetos comissionados de grande envergadura, a começar por Anish Kapoor. Junto a isso, artistas emergentes e consagrados estão sendo convidados a produzir projetos permanentes para o complexo, de modo a fazer da Cidade uma experiência constante de beleza, inspiração e transcendência.
Numa entrevista à Forbes, o milionário francês se manifestou a respeito da arte: “Não existe nada mais poético do que o processo criativo. Amo quando vejo alguém em um estúdio de música, trabalhando em como agregar as notas, amo a moda, criei algumas marcas fabulosas, amo quando vejo alguém preparando um desfile. Sou um amante do processo criativo porque acredito que isso salvará o mundo.”
Certamente não me cabe aqui duvidar da sua comovente sensibilidade, mas há algo mais em sua fala. Creio que para Allard, o processo criativo não salvará o mundo, salvará o capitalismo. Justamente porque não há nada mais neoliberal do que a premissa da “criatividade”. No caso da Cidade Matarazzo, um dos papéis da arte é produzir um senso de inclusão e representatividade que está longe de refletir a lógica estrutural do empreendimento. Mais uma vez, a equação é simples: a presença da prática artística é recurso publicitário para valorizar e justificar o negócio, “imunizá-lo”, quiçá.
Eu costumava achar que havia um abismo entre acreditar que a arte pode complexificar nossos modos de estar no mundo e simplesmente reduzi-la a um problema de gosto, mas esses discursos se encontram mais do que se imagina. Foi Pierre Bourdieu quem identificou que, segundo a perspectiva das classes dominantes, a maneira “legítima” de compreender uma obra é entendê-la como fim em si mesma. Ela não deve servir a fins políticos e econômicos, mas apenas ao próprio problema da linguagem. Porém, tal maneira “legítima”, como esmiuçou o sociólogo, tem como pressupostos (de classe) a formação de repertório, herança familiar e posição sócio-econômica, embora os iniciados se esforcem para que soe como dom natural e sensibilidade nata. Por isso Allard “ama” o processo criativo, porque parece acessar algo mágico e divino quando vê alguém trabalhando em “como agregar as notas”. E por isso seus empreendimentos também estão permeados de arte – é a aura que os torna legítimos e admiráveis. Acontece que, aqui, a arte está sim a serviço de fins políticos e econômicos, mas soa como se não estivesse. “O espetacular é um substituto suficientemente bom para o democrático”, diria Hal Foster no seu Complexo Arte-Arquitetura (2013).
O início desse casamento é longínquo, mas gostaria de chamar atenção para o fato de que a tal “autonomia” da arte, que nos fez crer que a prática artística está desatrelada de funções morais, científicas e funcionais, hoje é acionada com outras intencionalidades. Afinal, o trabalho “tem autonomia” em relação ao projeto, ao artista cabe fazer a sua arte, ao curador cabe fazer a sua exposição, e nada mais. Tal perspectiva autônoma pôs o trabalho cultural na chave da transcendência, cuja premissa é a de que a criação se dá para além das condições sociais e políticas, então só resta aos agentes envolvidos lavarem muito bem as mãos e seguirem para a próxima aventura. A responsabilidade é uma batata quente.
Mas as noções de autonomia e utilidade são mutuamente intercambiáveis e nada estáveis. Na caracterização acima, seria possível invertê-las, a depender do que esteja sendo enfatizado. Um trabalho supostamente comprometido em relação a determinados temas e questões pode ser apropriado de modo desinteressado. Na via oposta, um trabalho supostamente desinteressado pode ser bastante útil na construção de determinada narrativa social, pode ser instrumentalizado como força simbólica. Os sentidos são construídos sobretudo no modo como o trabalho circula, no modo como se desloca e habita o mundo. Não existe obra desencarnada. Um exemplo claro disso é a relação entre o mercado e as iniciativas independentes “sem fins lucrativos”, que acabam por agregar valor ao artista ou iniciativa por serem reconhecidas por seu propósito crítico e contestatório ao sistema (no caso do Pacaembu, a presença de trabalhos que estavam indiretamente criticando o projeto é evidência disso). No entrelaçamento entre produção artística e infraestrutura neoliberal, é preciso reconhecer cada vez mais curadores, instituições e empreendimentos como peças fundamentais na construção de sentidos que uma obra institui.
Voltemos à Cidade Matarazzo: o negócio é gringo, mas os “valores” são brasileiros. O hotel, com assinatura de Jean Nouvel (sua primeira obra na América Latina), é composto por uma “Torre Mata Atlântica” cuja estrutura é formada por uma série de planos verdes frondosos e terraços com árvores locais que devem simular uma invasão da mata sobre a arquitetura, uma espécie de triunfo da natureza. O projeto também se compromete a usar apenas materiais e fornecedores nacionais e não economizar no plantio de árvores comuns à Mata Atlântica ameaçada no local. Além disso, como é característica do arquiteto, soluções high tech serão conjugadas com efeitos de luz, transparência e leveza, fazendo da estrutura sólida algo translúcido e evanescente. Uma conciliação entre espetáculo e engenharia; imagem e estrutura. Mas sobra aqui, sem dúvida, a famigerada visão do paraíso tropical, o desejo de monumentalidade tão afeito à lógica contemporânea e o anseio de produzir um ícone instantâneo, templo de si mesmo. Nada muito diferente do que seja o olhar estrangeiro quanto às qualidades de um Brasil abundante e exótico.
Quando perguntado sobre como definiria a Cidade Matarazzo, Allard disse: “É uma máquina gigante para celebrar a diversidade brasileira.” Conquanto, se submetermos sua concepção de diversidade sob um raio-X, veremos um conjunto de lugares-comuns que refletem um neoprimitivismo muitas vezes mascarado de “desconstrução de valores hegemônicos”. O turista global da Cidade Matarazzo quer ver palmeiras e espécies exóticas no coração de São Paulo. Não se assuste se, no instagram do empreendimento, você encontrar fotos de indígenas com a hashtag #tribe, #DiscoverMatarazzo, #Diversity, entre outras. A floresta de Allard está mais para monocultura fetichista.
Acontece que quando o capital investe em “diversidade”, fica a impressão de que as coisas estão finalmente caminhando rumo à justiça, mas cabe desconfiar. Se quisermos fazer um paralelo com a discussão econômica, podemos reconhecer tal fenômeno como parte integrante do que entendemos por neoliberalismo progressista. No que consiste? Basicamente, uma política econômica regressiva com uma máscara inclusiva. Trata-se do capital que apoia a representatividade, as pautas minoritárias e a reivindicação por direitos dos movimentos sociais, enquanto investe em operações que degradam cada vez mais a condição de vida dos trabalhadores, contornando regulamentações e direitos. É o modelo que defende a diversidade, mas entrega precariedade. Que defende o “empoderamento”, mas o utiliza para devastar a indústria. Que desmonta estruturas sociais para sugar dinheiro de todos os cantos. Ou seja, a emancipação só existe até a segunda página, ou talvez sequer ultrapasse o primeiro parágrafo. Nancy Fraser definiu muito bem esse fenômeno no seu recente livro The old is dying and the new cannot be born (2019), mas o que me interessa aqui é chamar atenção para o fato de que, não coincidentemente, a arte contemporânea é muitas vezes o verniz desse modelo. O verniz que faz operações duvidosas soarem bacanas e descoladas. Como diz Hito Steyerl, “a arte contemporânea é um nome de marca sem uma marca, pronto para ser colado a tapa em quase qualquer coisa, um lifting facial expresso que promove o novo imperativo criativo em lugares que estão precisando de um extreme makeover”.
Além do efeito-maquiagem, é preciso falar das condições de trabalho. O meio artístico-cultural já operava segundo a lógica da flexibilidade, da terceirização e da precariedade. Uma avalanche de MEIs e PJs, estagiários voluntários, contratos escusos, abuso de poder, trabalho mal pago ou, mais que isso, trabalho não remunerado “em prol de algo maior”… a misteriosa visibilidade. Agora, esse pacote serve de exemplo para outros setores, e configura um novo modelo trabalhista.
Ao contrário de escandalosa, tal flexibilidade vem sendo qualificada positivamente pelo mercado, pois exige soluções cada vez mais inventivas e competitivas. É preciso ser criativo para sobreviver, eles dizem. Além disso, o trabalho flexível é a promessa da tal liberdade individual, pois seduz com a ideia de que cada um pode gerir sua própria rotina, fazer escolhas, ter autonomia, organizar seu próprio tempo e se “empoderar”. Não há tempo para identificação nem acomodação. A realidade, no entanto, reflete uma auto exploração assombrada pela insegurança e pela instabilidade, o que nos faz reconhecer que o trabalhador cultural é o produtor pós-fordista por excelência. Ou, em outras palavras, o meio da arte se tornou o modelo bem-sucedido da precarização porque, por cima de todas essas porcarias, somos o território do “sensível”, do “pensamento crítico”, da “força criativa” etc. Balela neoliberal.
Tudo isso, é claro, nos coloca numa posição difícil. A não ser que você seja herdeiro ou tenha sido agraciado com um sobrenome importante, pagar as contas te faz ter que jogar com esses esquemas. Daí que muitas vezes utilizamos o argumento de que vamos “ruir o sistema por dentro” para aceitar convites de iniciativas com que não concordamos no todo. Às vezes porque precisamos do dinheiro, às vezes porque desejamos algum prestígio e visibilidade, ou simplesmente porque é através delas que vai ser possível realizar qualquer coisa que seja. Na prática, o “ruir por dentro” tem tornado essas estruturas ainda mais fortalecidas e sofisticadas com os nossos selos politicamente engajados. E não é raro nos sentirmos ridículos.
Isabell Lorey (2015) tem definido a precariedade como forma de regulação do nosso tempo histórico. Mais do que isso: a produção de um regime de precariedade é a forma de governar pessoas no século XXI. A instabilidade produzida pela precarização nos impede inclusive de protestar e exigir direitos. Tememos perder laços de trabalho ao endereçar críticas, tememos fazer reclamações porque elas podem nos fechar portas no futuro. A expressão “rabo preso” vem muito bem a calhar. Ademais, o trabalho precarizado isola e individualiza o trabalhador, além de dificultar os recursos de organização coletiva. Não apenas porque acentua a concorrência, mas também porque fragmenta radicalmente as etapas de trabalho, suprime convivências e reduz encontros. Por tudo isso, a precariedade é uma governabilidade, e isso também é lição da arte.
Nós, trabalhadores do meio cultural, somos todos cúmplices dessa equação, em maior ou menor grau, e não estou isenta disso. Me pergunto, porém, se estamos realmente cientes de como isso integra o nosso trabalho diário. Não haverá vida imune ao mercado e nem redenção, mas ainda vale investir em alguma sobrevida que não se reduza a isso.
Antes de tudo, podemos desconfiar cada vez mais de discursos e propósitos pautados na transcendência da arte, da experiência e do valor. Junto a isso, podemos compreender que assumir uma postura política é agir diante de uma situação concreta, que vai além de rótulos discursivos, e isso significa analisar deliberadamente com quem nos associamos e sob que condições. Além disso, se não nos resta alternativas de trabalho mais saudáveis, talvez possamos negociar melhor os nossos aceites, de forma mais ativa e propositiva. Em todo caso, celebrar a “diversidade brasileira” não basta, cumprir as normas da representatividade tampouco. Precisaremos de articulação e imaginação coletiva e, não custa lembrar, já percebemos que isso não se resolverá nos feeds do instagram.